quarta-feira

Devolver a Ribeira das Vinhas a Cascais




O Vale da Ribeira das Vinhas, acessível a partir das traseiras do edifício do mercado, foi durante milénios um canal privilegiado de mobilidade para os Cascalenses. Era através dele, quando a vila dependia de forma directa do trabalho árduo e suado dos saloios que exploravam as pequenas unidades agrícolas situada no termo municipal, que chegavam a Cascais os legumes, as frutas e o leite que se produziam nas antigas aldeias rurais do Cobre, Murches, Zambujeiro, Malveira-da-Serra ou Janes. Era também através do caminho de pé-posto que acompanhava o serpentear das águas da ribeira, que as lavadeiras transportavam as roupas dos Cascalenses, num ciclo de interdependência que deu corpo à Identidade Municipal.

Ao nível dos costumes e das tradições, assim como nas crenças, nas práticas religiosas e na Fé, os Cascalenses construíram uma memória colectiva que reproduz um sentimento vivo e arreigado de Cascalidade. E grande parte desses usos e costumes, repetidos de forma reiterada ao longo de centenas de anos, concretizaram-se neste espaço extraordinário.

Paulatinamente abandonadas as pequenas explorações agrícolas que aí existiram até meados da década de 80 do Século passado, o Vale da Ribeira das Vinhas foi perdendo a sua importância no seio da comunidade Cascalense. As memórias antigas que integrava, foram-se apagando na medida em que iam morrendo os Cascalenses antigos que davam vida ao lugar, ao ponto de serem hoje muito poucos aqueles que conhecem este recanto encantado de Cascais.



   
Apesar disso, o Vale da Ribeira das Vinhas é ainda um dos locais de maior potencial para a Nossa Terra. Para além de ser uma via de comunicação acessível e confortável entre o centro da vila e os bairros periféricos, como o Bairro dos Pescadores, o Bairro da Caixa de Previdência, o Bairro da Assunção, a Pampilheira, o Cobre, o Zambujeiro, Murches, Alvide, Bairro Irene ou as Fontaínhas, permitindo transformar uma ida ao mercado, à praia ou à estação numa curta e inesquecível caminhada, o património histórico e natural ali existente, bem como a envolvente antropológica do local, poderiam ser facilmente aproveitados em favor do fomento da nossa identidade.




Assente no pressuposto de que a intervenção a realizar na Ribeira das Vinhas deve assumir um carácter minimalista, reduzindo ao mínimo o investimento público e rentabilizando os muitos equipamentos potenciais que ali subsistem, a nossa proposta passa pela recuperação do antigo caminho pedonal, integrando-o no património edificado ali existente, nomeadamente as azenhas, os moinhos e as várias estruturas agrícolas, complementado com a criação de uma bolsa de hortas urbanas que deveriam ser entregues à população. Nas componentes lúdica, pedagógica e turística, é essencial a recuperação das Grutas de Alvide e a recriação de vários trajectos pedonais e cicláveis associados à participação das escolas, associações juvenis cascalenses e aos agrupamentos de escuteiros.

Em ano de eleições, quando os poderes autárquicos se mostram naturalmente menos crispados perante as sugestões dos Cascalenses, vale a pena reforçar esta nossa proposta, convidando todas e todos os munícipes de Cascais para que literalmente invadam este espaço extraordinário.

A bem de Cascais!

quinta-feira

A Cabra, o Cabrão e o Balão na Tradição Académica de Coimbra




por João Aníbal Henriques

Existem tradições que ainda são o que eram. Em Coimbra, o ritual diário das aulas na sua avoenga universidade é marcado desde há muito pelo som produzido pelo balir da cabra e do cabrão, numa vivência profundamente marcada na identidade da cidade e impregnada do sabor firme da Portugalidade.

A torre da Universidade de Coimbra, construída entre 1728 e 1733, com projecto de António Canevari, vem substituir as instalações mais antigas e mais baixas que tinham sido projectadas por João de Ruão. A sua função de orientadora da cidade universitária, integra-se na fachada do pórtico principal, ostentando de forma gloriosa um dos símbolos-máximos da Cidade de Coimbra e de Portugal.



A lenda da Cabra, necessariamente anterior à construção do sino actual, está intimamente ligada à criação das principais rotinas no seio da universidade coimbrã e o seu toque, desde logo associada ao cumprimento de obrigações por parte dos milhares de alunos que por ali passaram ao longo dos séculos, assume-se como verdugo que impõe disciplina quando assim deve ser. É, por isso, um misto de raiva académica aquele que acompanha o som compassado do velho sino, no qual se mistura a nostalgia que a vida de estudante sempre acarreta.

As praxes e os rituais, hoje tão polémicos pelas implicações que traduzem, mas geralmente mito menos exigentes e cruéis do que aqueles que deram forma à academia coimbrã noutros tempos, são organizados ao toque da cabra que, do alto da torre setecentista, se espraia pelos cantos e recantos da cidade.

Ao nascer do dia, quando toca pela primeira vez o sino instalado com a face virada para a baixa da cidade e para o rio, a cabra toca acompanhada de um outro sino mais recente. De som mais grave e num compasso diferente, o cabrão anuncia os tempos novos que o novo dia que vai começar vai trazer. Datado de 1824, o cabrão acompanha ainda o sino virado a nascente, denominado balão e datado de 1561.




O designativo de “cabra”, atribuído pela turba estudantil mercê das implicações restritivas que o toque do sino tem na sua vida quotidiana, acompanha de forma inexoravelmente a mística da universidade e os próprios desígnios da Cidade de Coimbra. Provando que a tradição é por vezes muito mais importante do que a própria realidade, e que dela depende a identidade mais profunda e os próprios arquétipos de pensamento de uma determinada comunidade, o toque da cabra confere à comunidade que por ali passou um laço firme de coesão que o passar dos anos não consegue esbater.

Subir os quase trinta e quatro metros de altura da torre da Universidade de Coimbra, vindo de perto o conjunto sineiro da Cabra, do Balão e do Cabrão, é uma experiência única que altera a percepção que temos da universidade, apresentando aos olhos do visitante o esplendor soberbo de uma paisagem marcada de forma profunda e inabalável pela saudades.

Coimbra e o Choupal, prenhes de histórias que compõe a própria História de Portugal, é hoje ponto de visita obrigatório para quantos queiram conhecer e perceber este país tão especial. 

terça-feira

Santa Quitéria de Meca em Alenquer




por João Aníbal Henriques

A devoção a Santa Quitéria, perdida entre a lenda da mártir virgem que deu a vida para não entregar o corpo ao homem a quem o seu pai a tinha prometido em casamento contra a sua vontade e a ligação provavelmente pré-histórica aos cultos ligados à fertilidade e às tradições de origem agrícolas, encontra largo espectro no território português.

Em primeiro lugar porque, conforme reza a sua história, a virgem Quitéria, última das noves filhas a nascer de um único parto de Cálcia Lúcio e Lúcio Caio Otílio, o Governador Romano da Lusitânia de então, nasceu em Braga no ano 120. Depois porque, apesar de o seu martírio ter acontecido no actual território francês, ele vem cristianizar os antigos rituais ligados à protecção dos gados em ambiente rural, tendo sido adoptado na devoção popular com a santa cuja identidade aparece ligada ao combate à raiva.




Mas o mais estranho é que, a pouca distância de Lisboa, numa aldeia perdida no Concelho de Alenquer, a devoção principal se desenvolve numa desmesuradamente grande basílica situada na pequeníssima aldeia de Meca…

Quase parece, para quem ali chega pela primeira vez respondendo ao chamamento de visitar uma aldeia com o nome de uma das mais sagradas cidades muçulmanas, que a dita igreja é uma visão provocada por alucinações! Pela sua dimensão, pela qualidade da sua arquitectura, e pela localização privilegiada no centro do pequeno povoado rural, o templo parece ter sido transplantado para ali, depois de ser retirado de alguma sumptuosa cidade europeia.

Mas não foi. A Igreja de Santa Quitéria de Meca, classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1949, foi construída no Século XVIII, com desenho do ilustre arquitecto Mateus Vicente e o alto patrocínio da Rainha Dona Maria I.




O local, escolhido por existir uma lenda que diz que ali apareceu uma imagem de Santa Quitéria nos idos de 1238 da era Cristã, é o mesmo onde terá existido uma pequena ermida dedicada à mesma santa e que terá sido construída em plena Idade Média para marcar o local do milagroso aparecimento. Em frente à igreja, no adro actualmente atravessado pela estrada nacional, existe ainda o cruzeiro em forma de redondel em torno do qual se realiza anualmente o ritual da bênção do gado. Como desde há milhares de anos, os agricultores das redondezas trazem para ali o seu gado, fazendo-o circular em torno do dito cruzeiro, onde são abençoados em nome de Santa Quitéria para evitar que contraiam a raiva.

Em termos arquitectónicos, a magnificência do traço de Mateus Vicente, o mesmo que sublinha as características da Basílica da Estrela, em Lisboa, da Igreja da Memória  e do Palácio de Mafra, terá respondido à devoção da rainha, que viabilizou a sua edificação, recuperando valores estéticos próximos do barroco tardio, definindo um quadro artístico que denota alguma continuidade relativamente ao que então se fazia em Portugal.  A Igreja de Santa Quitéria, com a sua fachada principal virada a Sul, ostenta uma placa gravada onde se refere que a construção foi terminada em 1799 e que o templo se tornou Igreja Matriz em 1847. É também aí que surge a menção ao lendário aparecimento da imagem da Santa no ano de 1238.




Mais interessante, mas de muito mais difícil explicação, é a designação toponímica da localidade onde a igreja foi erguida. Seguindo as orientações de alguns especialistas em fonética que se dedicaram ao estudo do nome de Alenquer, que terá derivado de uma palavra árabe, a ligação à cidade sagrada do Islão resultará da sacralidade da própria envolvência. Apesar de existirem poucos vestígios arqueológicos desse período no território em questão, a proximidade ao cone vulcânico de Alenquer, parte integrante do património geológico da Serra de Montejunto, terá determinado o desenvolvimento ancestral de sistemas complexos de ritualidade religiosa que perpetuaram no tempo as crenças mais antigas que dão forma aos arquétipos da humanidade.

O certo é que a aldeia de Meca, em Alenquer, carrega consigo a marca perene das festividades da Primavera que durante o período calcolítico foram peça angular na regulação das sociedades humanas que vieram a desenvolver-se no actual território de Portugal. Cultuada em Maio, em festivais de base religiosa marcados, até épocas muito recentes, pela presença das flores e do viço próprio que marca o final do Inverno, Santa Quitéria de Meca insere-se assim num conjunto de práticas religiosas que corporizam o principal alicerce cultural da Portugalidade.




Distando pouco mais de 50 quilómetros de Lisboa, num trajecto marcado pela passagem obrigatória pelo designado “presépio natural” de Portugal, ou seja, a Vila de Alenquer, impõe-se uma visita a Santa Quitéria de Meca. Pela sua beleza, pelo impacto que produz a quem se depara com a sua ostensiva e inesperada monumentalidade mas, sobretudo, pela estranheza e enorme interesse da sua história.

Monte Estoril - Salvar a Identidade Municipal




por João Aníbal Henriques

O deslumbramento onírico que transparece do Monte Estoril, resultante de mais de 130 anos de genialidade promovida por aqueles que ousaram sonhá-lo e construí-lo, assenta na sua monumentalidade e também numa comunidade socialmente coesa que partilha uma identidade arreigada e irrepetível.

O seu plano de desenvolvimento urbanístico, desenhado à priori num exercício perfeitamente inédito no Portugal de então, espelha de sobremaneira a genialidade dos seus vários promotores. Desde José Jorge de Andrade Torrezão, passando por Carlos Anjos e pelo Conde de Moser e mais tarde pela singularidade humanística de figuras como João de Deus Ramos e José Dias Valente, vários foram aqueles que definiram o Monte Estoril que hoje temos.




O traçado das suas ruas, os planos arquitectónicos das suas casas, as espécies vegetais escolhidas para cada jardim, e até a forma como foram construídos os seus muros e definida a sua linha de paisagem, foram algumas das peças que dotaram a localidade de um charme que perdurou de muitas gerações e cujo eco, apesar de tudo, ainda hoje se sente nos recantos encantados que sobreviveram à paulatina destruição.

Tendo sido, desde há muito tempo, alvo da cobiça desmesurada e do despudor dos decisores político-partidários, o Monte Estoril tem vindo a ser delapidado da sua riqueza com grave prejuízo para a Identidade Municipal. 

Com a aprovação e entrada em vigor do novo Plano Director Municipal, em meados de 2015, seria expectável que ficasse definitivamente traçada uma política de salvaguarda que protegesse o Monte Estoril de futuros ataques à sua identidade. Mas não aconteceu assim.

Contrariando a orientação política comum nos países que entendem a importância do património na definição da identidade de um espaço e na qualidade de vida dos seus moradores, o actual PDM limitou de forma extraordinária a listagem de imóveis com importância patrimonial no Monte Estoril, e definiu um parcelamento territorial em unidades designadas como ‘operativas’, cujo resultado principal é já a apreciação casuística de cada projecto que para ali venha a ser apresentado.

O Monte Estoril fica assim, novamente, a depender da vontade, a perspectiva, da sensibilidade e dos conhecimentos de quem decide, sujeito às vicissitudes que nas últimas décadas o têm vindo a destruir progressivamente.



E são muitos os casos que são premente na definição do que se vai fazer no Monte Estoril nos próximos tempos. A construção do novo edifício onde se situava a Discoteca Bauhaus; as ruínas do antigo Hotel Miramar; o projecto de reconversão do Edifício Cruzeiro e a eventual demolição do picadeiro e da antiga sede do Grupo Desportivo Estoril-Praia; a mítica Vila Montrose; a Villa Baía; as cocheiras da Avenida das Acácias; a estação dos correios; a Villa Guarita; a Vivenda São Francisco; ou a Vivenda Boa-Vista; são apenas alguns exemplos de imóveis fundamentais para o futuro do onte Estoril aos quais tudo pode acontecer ao abrigo do novo PDM.




Às entidades oficiais que são responsáveis pelo futuro desta terra essencial para a vocação turística dos Estoris, exige-se agora uma atenção especial a cada um destes projectos. E aos Monte-Estorilenses, pede-se redobrado cuidado relativamente ao que for acontecendo e o reforço da coragem e da determinação que já tantas vezes mostraram possuir.

Porque ainda vale a pena tentar defender o futuro desta tera que herdámos dos nossos avós e que temos a obrigação de legar aos nossos netos. 

Carlos Antero Ferreira (1932-2017) - A Genialidade dos Afectos na Portugalidade



Com 84 anos e idade, faleceu esta semana uma figura ímpar da Portugalidade. Carlos Antero Ferreira, Arquitecto, Professor e Poeta, era Académico Honorário da Academia de Letras e Artes e desempenhava ilustremente funções como Presidente da Assembleia Geral desta instituição.

Na sua dimensão material, o Ser Humano vive constrangido pelo binómio espácio-temporal que determina a sua existência. O nascimento, a vida e a morte, num desígnio inexorável que traga todos da mesma maneira, caracterizam a existência do comum cidadão, cuja vida se esgota num determinado lugar e num determinado tempo.

Mas existem alguns que, pela genialidade da sua existência, conseguem transcender o espaço e o tempo, alcançado uma imortalidade que os perpetua na sociedade de forma transversal e que estende a sua influência ao longo das eras.

Foi o caso do Professor Arquitecto Carlos Antero Ferreira.

Num exercício permanente de genialidade, carregava consigo uma erudição sem limites. Mas, ao contrário do que acontece com outros, cuja soberba naturalmente se impõe pela grandiosidade do seu pensamento, impunha a sua existência num plano humanista que o colocava naturalmente ao nível da comunidade onde sempre foi tão importante. Sendo o primeiro pela dimensão e excelência do seu trabalho, partilhava naturalmente com os seus amigos e colegas a sublimidade de um artista que só a imensa maturidade do seu génio pode explicar, augurando uma sensibilidade única que transpirava no contacto pessoal, nos livros que escreveu, nas conferências que proferiu e nos imensos desafios profissionais que dele fizeram uma das grandes personalidades da cultura nacional.

Carlos Antero Ferreira, que foi Presidente do Centro Cultural de Belém, Presidente do Instituto Português do Património Cultural, Presidente da Academia Nacional das Belas Artes, Professor Catedrático e fundador da Faculdade de Arquitectura de Lisboa, Director da Sociedade de Geografia de Lisboa, Fundador da National Geographic Society e Senador da Universidade Técnica de Lisboa, de entre muitos outros cargos e funções de um currículo riquíssimo que demonstra o seu pragmatismo e capacidade de fazer, foi sobretudo um dos principais obreiros da Portugalidade, deixando um imenso vazio que dificilmente poderá voltar a encher-se.

Ávido de saber e de novos conhecimentos até ao final da sua vida, num exercício pleno do seu carácter de sábio maior que tão bem desempenhou, Antero Ferreira alcançou a sublimidade do seu génio através da poesia e das artes, nas quais se elevou a patamares de excelência inigualáveis, só possíveis pela humildade natural da sua sabedoria e pela permanente vontade de aprender com tudo e com todos.

Eterno na grandeza da sua obra e do seu génio, o Professor Antero Ferreira deixa atrás de si uma saudade que ilustra bem o pesar que a sua morte física representa para Portugal e para os Portugueses. 



segunda-feira

Santa Maria de Pitões das Júnias no Coração da Portugalidade




por João Aníbal Henriques

A monumentalidade do património Português, mercê da grandiosidade dos estilos arquitectónicos e da riqueza do património artístico, assenta sobretudo na ânsia permanente que o Homem sente na sua busca pela eternidade. As grandes obras, definidas pelo carácter que resulta do impacto que se imagina que terão sobre as gerações vindouras, é quase sempre uma espécie de manobra desleal para enganar o tempo, eternizando na pedra, nas cores e nos sons as memórias daqueles que a nós se seguirão na implacável caminhada pelo Mundo que todos fazemos. Procura-se ficar marcado, na ilusão de que as obras monumentais são a melhor forma de fugir ao inexorável esquecimento imposto pela passagem do tempo.

Mas existem outros monumentos, provavelmente imaginados e construídos por gente especial, que fogem a este estereótipo. E, por vezes, nem por isso são menos eficazes na geração do carácter extraordinário do impacto que provocam naqueles que os vão visitar.




É precisamente isto o que acontece com o Monteiro de Santa Maria de Pitões das Júnias, situado no Concelho de Montalegre na Serra do Gerês. A magnificência da paisagem envolvente, aliada ao carácter minimalista do monumento, define um cenário de profundo significado simbólico que, por sua vez, gera um impacto desmesurado sobre os seus visitantes.

Construído originalmente no Século VIII, ainda antes da formação da nacionalidade, o Mosteiro de Santa Maria de Pitões das Júnias seguia originalmente os parâmetros de simplicidade da Ordem Beneditina. Os afloramentos graníticos onde se insere, conjugados com a força telúrica das águas que o envolvem e do verde imposto pela vegetação ali existente, conjugam-se num quadro de grande isolamento, promovendo a interioridade e a ligação directa à vontade de Deus.

Em Pitões das Júnias, nos primeiros tempos após a sua construção, os frades que ali residiam dedicam-se exclusivamente à pastorícia, dela dependendo para a sua mais basilar sobrevivência. Perdidos nas penedias enormes que se erguem por aqueles ermos, os religiosos entregam literalmente o corpo e a Alma à vontade do Pai, numa ânsia de ascensão em cuja brutalidade dos elementos e da natureza encontravam pistas que lhes permitiam desvendar os segredos do Universo. Era pois das virtudes interiores, ressurgidas através dos exercícios espirituais que a envolvência do mosteiro naturalmente promovia, que se consagrava aquele espaço, do qual estavam apartados todos os apelos mais basilares dos instintos e, inclusivamente, a humanizada vontade perene de perpetuação no tempo, cujo mote servia de motor à religiosidade de outros lugares.

São os valores essenciais do trabalho, da humildade e da oração, pilares estruturais da prática de São Bento, quem melhor define o carácter pétreo deste extraordinário mosteiro. Mesmo depois de ter passado a seguir a regra de Císter, seguindo a mesma lógica de combate ao abandalhamento espiritual que Cluny estava a impor na Europa do seu tempo, é na singeleza do assumir a pobreza e no desapego relativo à materialidade, que os monges de Pitões das Júnias constroem o seu legado, bem patente nas obras de remodelação da sua igreja e no carácter místico do seu adro. Ainda hoje, quase mil anos depois desses tempos que nunca chegaram a passar, se sente por ali o sopro fecundo do vento da montanha, recriando um som de fundo que quase obriga ao recolhimento imediato. Sendo o mesmo que ouviram os monges que ao longo de muitos séculos por ali deambularam, limpando-se das negras memórias pessoais que cada um transportava e apelando em conjunto à misericórdia imensa de Deus Pai, é crível que a eternidade se tenha imposto a este lugar. Nas lajes que formam o seu chão antigo, ouvem-se ainda os passos de todos os que por ali circularam. E nas paredes pétreas das ruínas de sobreviveram à história longa pela qual passaram, ecoam os cânticos e o sopro sibilino das orações que ali foram rezadas…




A invocação a Santa Maria, neste caso específico à Senhora da Conceição, padroeira e Rainha de Portugal, conflui da mesma maneira para um apelo quase herético à ritualidade mais ancestral. De facto, se nos ativermos ao carácter profundo e simbólico desta construção, depressa percebemos que o segredo mais perene daquelas paredes enegrecidas pelo tempo, assenta num esforço de abdicação das causas comuns do Homem para tornar possível a consagração dos rituais de limpeza que abrem a Alma e permitem ascender à sabedoria divina. O caminho, mais do que o destino final, são aqui assumidos como pedra angular, sendo que a evocação à Senhora da Conceição, rosa crucificada pela entrega do seu próprio Filho aos desígnios do seu Pai, alimenta uma dinâmica de Fé cuja sabedoria intrínseca aponta para a dualidade essencial da existência da própria Alma humana. Com carácter profundamente individual, este caminho é feito na rota da transitoriedade, tal como a vida e a morte, num jogo do qual nenhum de nós se pode alhear, dita destinos para cada um individualmente, que são transformados pela duração sempre curta da caminhada que todos por cá teremos de concretizar.

Simples na sua formulação espacial, até pelo carácter firme de São Bento e de Císter, é o isolamento que mais marca a monumentalidade do espaço. Construído em estaleiros que aproveitaram os materiais existentes no local, aprofunda o ascetismo primário dos que o imaginaram e criaram, sublinhando o valor da entrega e a pobreza que transversalmente caracterizou todos aqueles que por ali habitaram.

Abandonado no Século XIX, quando foram extintas das ordens religiosas, o antigo mosteiro passou a ser utilizado pela população local como Igreja Paroquial, perdendo progressivamente o carácter simbólico que o transformava num sítio muito especial. A agrura do clima, complementado com o carácter inócuo do comportamento da ribeiro que o atravessa, foram paulatinamente degradando o espaço que é hoje uma mera ruína que palidamente consegue traduzir a grandiosidade do que ali se passava.




O Mosteiro de Santa Maria de Pitões das Júnias, ao qual se chega depois de uma caminhada de poucos mais de dois quilómetros desde a povoação que lhe dá o nome, é uma das mais extraordinárias pérolas do Património Nacional,  sendo um dos mais inesquecíveis e impactantes recantos encantados de Portugal.

Pena é (ou se calhar não) que se mantenha tão longe das rotas normais dos muitos que visitam o Parque Nacional da Peneda-Gerês e, sobretudo, da memória colectiva que corporiza da Identidade de Portugal. 

sexta-feira

O Castelo de Portel Mafomede no Alentejo




por João Aníbal Henriques

Assumindo a sua posição altaneira relativamente à bonita vila de Portel, no Alentejo, o Castelo de Portel é um dos mais extraordinários vestígios da origem cultural de Portugal e da ligação profunda e arreigada às tradições ancestrais que deram forma aos mais importantes arquétipos da humanidade.

Não se conhecendo de forma documental a sua verdadeira origem, é crível que antes do início da construção da actual edificação, ali existisse já uma fortificação anterior, provavelmente de origem muçulmana, que daria corpo ao sustento da população que vivia naquele espaço. Na documentação coeva da sua construção, a Casa Real Portuguesa denomina a vila como ‘Portel Mafomede’, numa prática toponímica que aponta para uma pré-existência islâmica cuja origem não será diferente daquela que noutras zonas do actual território nacional terá conduzido à aculturação que forma a Identidade Nacional.

A atribuição toponímica de Portel a Mafomede, curiosa se pensarmos que a diabolização da expressão resulta do processo de extinção da Ordem dos Cavaleiros Templários, assume foros de grande importância quando nos debruçamos sobe a origem do castelo. Em primeiro lugar porque, como se sabe actualmente, a figura da Mafomede ou Bafomet, representa basicamente as três formas de expressão primordiais da matéria. No Convento de Cristo, em Tomar, a figura de Hermes Trismegisto é representada numa das pedras angulares da edificação representada como Bafomet com as suas três faces reinantes. Depois, porque a divinização trina que Bafomet compõe, juntando num mesmo plano as diversas faces que apresenta Deus na sua expressão simbólica de eixo estrutural da humanidade, uma reposição dos antigos cultos pagãos de origem Grega que, compondo o seu corpo de saber sobre os rituais ancestrais que acompanharão a evolução humana na bacia do Mediterrâneo, nos levam até à figura do Deus Pã, complexão estática do sopro deífico que dá forma lendária à origem de muitas das mais importantes povoações de Portugal.




No Grego antigo, por exemplo, a expressão Baph Metis, significa literalmente o “baptismo da sabedoria”, sabendo-se ainda que a mesma expressão em hebraico, utilizando a codificação cabalística, significa Sophia, ou sabedoria…

Em qualquer dos casos, o Portel que hoje temos, foi outrora o Portel Mafomede, num fluxo generalizado de saber oculto, que determinou o processo de reconquista Cristã em que se insere a construção do castelo actual e, mais importante ainda, a definição dos equilíbrios político-administrativos no recém-criado Reino de Portugal.




De facto, quando em 1257 o Rei Dom Afonso III entregou a João de Aboim as terras de Portel Mafomede, determinando o início da construção do castelo e retirando-as ao Termo de Évora, o que está em causa é a preservação do controle político deste importante território. Para além de impor uma dinâmica concertada no que concerne ao processo de reconquista, a doação e posterior construção da estrutura amuralhada reforçam ainda o poder político pessoal do novo rei, depois da conturbação política que ditou o afastamento do seu irmão, o anterior Rei Dom Sancho II. Portel surge assim como axioma de referência, na definição daquela que virá a ser a intervenção política da Casa Reinante, e que durará até ao fim da Primeira Dinastia, em 1385.

João Peres de Aboim, de origens minhotas e filho do senescal do Rei Dom Sancho II, é apresentado na documentação ceva como “um fidalgo violento e insaciável que saqueava sem mercê os bens dos municípios e dos seus moradores”. A sua proximidade ao infante Dom Afonso, com o qual ruma a França onde preparam a revolução que ditará a subida ao trono deste, acabará por granjear-lhe um poder sem igual, que manterá mesmo depois da morte do rei e durante todo o período em que durou o reinado de Dom Dinis.

As obras do castelo de Portel, prolongaram-se também ao longo das décadas seguintes, acompanhando a mudança radical introduzida em Portugal pelo Rei Trovador, sempre acompanhado de perto por João de Aboim que preserva as honras inerentes a facto de ter sido Mordomo-Mor do Reino.




O rei Dom Dinis, o alquimista assumido que planta as naus que desde Leiria darão novos mundos ao Mundo, é assim o verdadeiro Hermes Trismegisto de Portel, consagrando nas suas três faces de político, poeta e mágico a apetência para transformar aquele espaço na referência primária da consolidação do cristianismo herético da Ordem de Cristo, na pedra angular da Identidade Nacional. Não é por acaso que, quando Mafomede é utilizado como argumento no julgamento que ditará a extinção dos Templários, dizendo-se que representa um culto satânico de cujo poder depende o sucesso militar e religioso da ordem liderada por Jacques de Molay, em Portugal é o Rei Dom Dinis que contorna as directivas papais criando a nova Ordem de Cristo para a qual transitam os bens templários existentes em Portugal e, possivelmente, os próprios directores espirituais da antiga ordem.

De qualquer maneira, depois da morte do Rei Dom Dinis e do construtor do castelo, a contenda jurídica que envolve os seus herdeiros acaba por decidir a recuperação da propriedade por parte do Estado e, em 1384, a sua entrega ao Condestável de Portugal, Dom Nuno Álvares Pereira, que junta as terras de Mafomede ao património do que há-de vir a ser a Casa de Bragança.

O Santo Condestável, nessa altura já transformado em Frei Nuno de Santa Maria, obreiro da magnitude enorme da Ínclita Geração e concretizador do projecto alquímico plantado pelo Rei Dom Dinis, trabalha sob o signo da flor-de-lis, sob a tutela de Dom João I, o Mestre de Avis, transformando Portel num verdadeiro caldeirão alquímico no qual tudo pode acontecer. A mítica transmutação da matéria, epíteto maior que resulta da posse do segredo da pedra filosofal, conduz no recato de Portel à transmutação das almas. Mafomede, com as suas três faces, nada mais é do que o simbólico arquétipo da Santíssima Trindade, consolidando pelo verbo do Pai e o pão que se transforma em carne, do seu Filho, a força maior transformadora que concebe o Espírito-Santo. E este, por seu turno, subvertendo a realidade e condecorando como Rei o mais humilde dos seus servos. Como se vida e morte fosse uma realidade só!




Depois de perdida a sua utilidade militar, o Castelo de Portel foi entrando num paulatino processo de ruína que culminou, já no início do Século XX, com as primeiras campanhas de reconstrução que o dotaram do aspecto actual.

Durante a vigência do Estado Novo, num processo conduzido pela então Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, foi recuperada a sua vocação romântica, introduzindo-lhe uma cortina de ameias que, em conjunto com a adaptação da sua Torre de Menagem, lhe alteraram a estrutura e o adaptaram à vocação turística que então se assumiu para Portugal.
O Castelo de Portel, pleno de potencial turístico e cultural, está hoje aquém daquilo que poderia ser na definição da memória colectiva do Alentejo e de Portugal. A sua importância efectiva e o simbolismo que agrega, fazem dele uma peça essencial para se perceber quais são os desígnios nacionais e a forma como nestas paragens se encontram os resquícios mais profundos da nossa Identidade Nacional. 

Pode ser que um dia alguém se dedique novamente a este recanto tão especial de Portugal.

quinta-feira

Cascais a Duas Velocidades

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A inauguração da A5, em 1991, modificou radicalmente os equilíbrios urbanos no Concelho de Cascais. O novo eixo viário, cortando longitudinalmente o território municipal, transformou-se numa barreira artificial que literalmente afastou o litoral do interior e produziu duas realidades distintas que desde há mais de 25 anos afectam a qualidade de vida de muitos Cascalenses.

A diferença entre o Cascais do interior e o do litoral é abissal. Depois da inauguração da auto-estrada, a gestão urbanística do território situado a Norte sofreu as consequências do afastamento físico provocado pela mesma e desenvolveu-se a partir de um modelo vivencial marcado pela proliferação das construções clandestinas e pela paulatina destruição dos antigos núcleos urbanos consolidados.

Aldeias como a Abóboda, Quenene, Polima, Trajouce, Tires ou Talaíde, foram completamente desvirtuadas, perdendo a Identidade arreigada que possuíam e desenvolvendo novos reequilíbrios profundamente marcados pela anomia social e por um cenário de caos que se espraiou na degradação da segurança, da mobilidade, da habitação, da saúde, da educação, do património e das demais áreas que se sabe que são indicadores essenciais para a qualidade de vida das populações.

A vocação turística municipal, que era o pilar sustentador do antigo PUCS (Plano de Urbanização da Costa do Sol), foi substituída em 1997 pelo primeiro PDM (Plano Director Municipal), que assumiu a legalização a todo o custo como principal prioridade municipal. E desta maneira, com fundamento legal e suporte político dos partidos que desde então governaram Cascais, praticamente 1/3 do território concelhio foi absorvido pelo desregramento urbano e fez colapsar os últimos resquícios da cidadania Cascalense.

Esquecido por todos ao longo deste tempo, e vivendo numa espécie de clima brando de auto-gestão, o interior de Cascais passou a viver em ciclos de quatro anos. Esquecido pelo poder político durante a maior parte do tempo, era literalmente invadido pelos diversos partidos em época eleitoral, numa lógica de propaganda que ciclicamente o enchia de novas passadeiras, bancos de jardim, semáforos e novos arruamentos, bem como de festas e foguetes para comemorar o sempre propagado “interesse extraordinário pelo interior de Cascais”.


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Com a aprovação do novo PDM em 2015 (Ver AQUI), perdeu-se a grande oportunidade da década para inverter esta situação. Ao invés do que seria de esperar, o novo plano não assume a bipolaridade territorial e, por isso, não projecta uma nova dinâmica que permitiria ir progressivamente invertendo esta dramática situação.

E que fácil seria fazê-lo! Até porque, tal como acontece no litoral, o interior é um espaço  riquíssimo de potencialidades que a generalidade dos Cascalenses desconhece. Do património à paisagem, passando pelo que resta da identidade rural desses espaços antigos e pela pujança empreendedora das suas novas populações, a zona Norte do território Cascalenses possui todas as condições que lhe permitiriam requalificar-se e garantir a todos os cidadãos os mesmos parâmetros de qualidade que algumas zonas mais privilegiadas já têm.

A nível das acessibilidades, seria essencial que existisse um verdadeiro plano municipal de mobilidade. Sem a propaganda política que distorce a realidade, exigir-se-ia que fossem criados verdadeiros corredores cicláveis entre as duas partes, complementando uma rede real de transportes que assumisse a componente de serviço público da sua função, e reaproximasse os munícipes.

Os eixos verdes das ribeiras que transversalmente cruzam o concelho, desde a Ribeira dos Mochos até à Ribeira da Laje, são canais naturais que estão adaptados à situação imposta pela A5 e que, até por isso, poderiam ser rentabilizados de forma integrada num plano municipal que abrangesse as duas realidades de Cascais. No caso da Ribeira das Vinhas, por exemplo, o eixo verde que acompanha o leito é transitável desde o coração da vila até à Barragem do Rio da Mula (Ver AQUI e AQUI), configurando uma verdadeira preciosidade na reformatação social das localidades por onde vai passando.

Ao nível da gestão urbana, seria essencial um recentrar das prioridades de investimento no interior, assumindo uma intervenção de fundo que efectivamente transformasse as legalizações forçadas dos antigos bairros clandestinos em acções verdadeiras de requalificação, aproximando paulatinamente os índices de qualidade urbana de ambas as partes do concelho. Os núcleos patrimoniais mais importantes como FreiriaAlapraiaAlto do Cidreira, ou os Casais Velhos, deveriam ser transformados em fulcro desse investimento, consubstanciando uma política que recuperasse efectivamente a qualidade urbana e que, ao mesmo tempo, promovesse a memória colectiva e a Identidade Municipal.

Como é evidente, uma intervenção nesta linha, que esbatesse a diferenciação negativa que afecta a territorialidade de Cascais, seria um projecto de longa duração. E, por isso, é incompatível com os ciclos eleitorais autárquicos que de quatro em quatro anos subvertem a realidade e impõem interesses terceiros aos interesses legítimos e Cascais e dos Cascalenses.

Mas, num ano em que o céu de Cascais será riscado em permanência pela magia dos foguetes e o ar se vai encher do ribombar dos tambores que acompanharão as muitas festas que se vão fazer, vale a pena apresentar uma vez mais a sugestão, porque dela depende o futuro desta Nossa Terra.

quarta-feira

Nossa Senhora da Boa Viagem na Ericeira




por João Aníbal Henriques

O deslumbrante recanto onde se situa a Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ericeira, envolvendo com a perspectiva de um olhar a pitoresca Praia dos Pescadores e impondo-se sobranceiramente à singeleza do casario branco pontilhado de riscas azuis, é por si só um dos mais emblemáticos espaços daquela vila piscatória. Dividindo o Norte e o Sul, quase como se do verdadeiro axis mundi se tratasse, servia igualmente de elemento de orientação à navegação, salvaguardando a boa viagem dos pescadores locais.




A devoção a Nossa Senhora da Boa Viagem, comum nas comunidades de homens do mar que se foram instalando em todo o território de Portugal, ganha na Ericeira foros de grande dignidade, facto que se consubstancia na antiguidade da confraria existente no local e no elevado número de devotos que anualmente a procuram para protecção nas suas viagens.

Existente de forma comprovada desde o Século XVII, quando ali se realizaram obras de recuperação que ficaram gravadas junto à porta situada na fachada principal, é provável que a capela fosse mais antiga e que tenha ali existido pelo menos desde o Século XV. Ao longo da sua história, foi alvo de diversas obras e intervenções que a dotaram do aspecto actual.

Simples na sua configuração interna e utilizando o estilo chão próprio das comunidades piscatórias mais pobres que habitaram a região de Lisboa, a Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem possui ainda um segundo orago dedicado a Santo António. A devoção ao santo taumaturgo, centrada numa confraria que lhe era dedicada e na qual tinham lugar todas as raparigas solteiras das redondezas, é responsável pela designação popular que ainda hoje subsiste e que a atribui ao santo lisboeta.




Em Outubro de 1910, depois de uma última noite passada no Palácio de Mafra, o Rei Dom Manuel II e a Família Real, embarcaram para o exílio na praia situada junto a esta capela. O último vislumbre que tiveram da Pátria, num acto de entrega ao destino que foi adverso às mais antigas tradições de Portugal, foi precisamente o da Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, numa reviravolta insalubre da sua estratégia de inverter o ciclo negativo que afectava o desígnio Nacional.

Nossa Senhora da Boa Viagem, iconicamente ligada à faina do mar, carrega consigo a atitude de dependência profunda perante as forças da natureza que os pescadores da Ericeira sempre mostraram. Nela converge o plaino da Fé dos homens do mar e para ali são dirigidas as preces assustadas das mulheres que ficam a guardar as suas casas.





Certamente por desígnio do destino, é também nesta capela que se venera Santo António, também ele ligado de forma marcante aos peixes e à força das águas, num discurso em que a posição de fulcro, para onde convergem os opostos e os contrastes, se dissolve numa amálgama sentida dos laivos da vida e da morte que ditam a condição humana. 

É, pois, de humanidade que nos fala esta singela capela. No seu espaço de luz, sobranceira à extraordinária vontade de Deus e dos homens, dela emanam as indicações que permitem o regresso a casa. Seja ela a casa de família do devir quotidiano, ou seja ela a casa do Pai.