quinta-feira

Sem Mãos em Vouzela e os Símbolos de Portugal




A honra e a glória andam quase sempre a par nos momentos mais marcantes da História de Portugal. Gente houve que, virando as costas ao sofrimento e à morte, ofereceram as mãos, os braços e a própria vida para salvar Portugal. Foi o que aconteceu com Duarte d’Almeida, o decepado de Toro, que recebeu o Paço de Vilharigues como prova do reconhecimento real pelos membros que deixou em terras de Castela.

por João Aníbal Henriques 

O heroísmo faz parte da História de Portugal. Num país que quando analisado de forma cuidadosa se percebe de imediato que não tem nenhuma razão pragmática que explique a sua independência e o facto de ter conseguido sobreviver a estes quase 9 séculos, assumem especial importância os actos heróicos de gente que foi capaz de superar os limites da existência e da racionalidade prática que dá forma à vida em sociedade. Foram eles quem tornou possível a existência de Portugal, concretizando autênticos milagres que são essenciais para se perceber este País extraordinário.

Em Vouzela sobrevivem hoje os resquícios únicos de um desses milagres excepcionais. O Paço de Vilharigues e a lendária estória do Decepado de Toro, o porta-estandarte do exército Português que, em 1476, ofereceu as mãos os braços para salvar a bandeira Nacional, são o presente de reconhecimento que a coroa entregou ao herói que deu forma a um dos mais marcantes (e desconhecidos) episódios da História de Portugal. Não existem provas da presença de Duarte d’Almeida neste lugar. Mas o que importa isso perante o valor tão grande deste símbolo excepcional?

No centro da Cidade, ali mesmo onde a solidez da pedra se impõe na arquitectura românica da Igreja Matriz de Vouzela, sente-se o peso de vários milhares de anos de História.

Vouzela sempre foi uma cidade importante. Embora seja dos Romanos que resta o maior número de vestígios, bem documentados através dos marcos miliares que nos permitem conhecer o emaranhado de muitas estradas que ligavam a cidade directamente a Roma, são pré-Históricas as origens deste espaço, carregando consigo os episódios rocambolescos que várias gerações foram acrescentando à História do lugar.

Apesar disso, o desígnio de Vouzela é uma lenda, perdida nos tempos e na tradição popular. Duarte d’Almeida, o decepado alferes-mor de Dom Afonso V, que está indelevelmente ligado a cada canto e recanto da localidade. Não se sabendo se existiu de facto, é ele o mítico senhor da região de Dão-Lafões que perdura nas memórias do povo e que transborda nas pedras duras que dão forma às casas, aos monumentos e à fácies da cidade.

A partir do alto da Senhora do Castelo, onde ainda se vislumbram os restos de um antigo castro que defendia as populações locais durante o conturbado período do neolítico, percebe-se bem a grandeza das terras de Vouzela. A Senhora do Castelo, ou da Esperança, conforme surge em alguns documentos medievais, dá o mote a um espaço com ocupação comprovada desde a pré-História e desde sempre de importância estratégica na salvaguarda e na segurança da cidade situada no sopé do monte. As duas interessantes sepulturas antropomórficas existentes no local, escavadas na rocha que também serviu para construir as muralhas que deram forma ao castro e que serviram pelo menos até à época medieval, mostram bem a ligação quase irracional que existe entre a vida e a morte neste local. Interagindo, o espaço dos vivos e o espaço dos mortos complementam-se, da mesma forma como se complementam os sonhos e os anseios da população actual com os vestígios, reais e imaginários – o que importa? – dos antigos que por lá viveram.

Reza o ditado popular que “triste é o povo que precisa dos seus inimigos para honrar os seus heróis”… e é isso precisamente que representa o Paço de Vilharigues, em Vouzela, tradicionalmente apontado como a casa do alferes-mor de Dom Afonso V, Duarte d’Almeida, conhecido como o “decepado” por ter perdido as mãos e os braços na batalha de Toro.

A armadura do alferes-mor Português, entendido pelos “inimigos” espanhóis como um herói corajoso e intrépido que foi capaz de se entregar pela causa que representava, está exposto em lugar de grande destaque na Capela de Santiago (Patrono de Espanha), na Catedral de Toledo, homenageando o herói nacional.

Responsável pelo pendão Nacional naquela batalha, Duarte d’Almeida foi perseguido pelo inimigo que lhe cortou a mão com a qual segurava o símbolo de Portugal. Continuando a lutar, o alferes-mor passou a bandeira para a outra mão que lhe foi cortada de seguida. E antes de cair, num espectáculo de sangue e sofrimento que serviu para preservar a honra de Portugal, ainda conseguiu segurar a bandeira com a boca para a entregar a um compatriota que a colocasse a salvo.

Em Espanha é homenageado como herói. Em Portugal ninguém sabe que ele foi nem que entregou a própria vida para salvar Portugal…

terça-feira

A Rainha Santa Isabel e o Milagre de Portugal



por João Aníbal Henriques

Em linha com o conjunto de circunstâncias inexplicáveis que dão forma aos mais importantes e impactantes episódios da História de Portugal, o conhecido “Milagre das Rosas”, protagonizado pela Rainha Santa Isabel, é um dos mais importantes exemplos da forma como o maravilhoso e o fantástico se cruzam amiúde, dando forma a entendimentos que ultrapassam gerações. São eles que, sem sentido algum, dão sentido ao sempre intrincado enredo de condicionalismos que compõe a existência humana…

Nascida em 1271 e filha do Rei D. Pedro III de Aragão e da Rainha Constança da Sicília, Isabel de Aragão foi rainha de Portugal por casamento efectuado por procuração com o Rei Dom Dinis em 1282.





A criança, trazida para Portugal em virtude de um casamento que resultou dos interesses políticos daquela época, recebeu mercês diversas e o senhoria de uma imensidade de cidades e vilas que serviram de dote inicial.

Com um marido que os documentos coevos apontam como “pouco devotado” à sua jovem esposa e dedicado em demasia aos encantos femininos de Portugal, a Rainha Santa Isabel ficou conhecida pela forma benigna que utilizava para tratar o seu marido e os muitos filhos ilegítimos dele. Em igualdade com os seus próprios filhos, a todos tratou com o mesmo desvelo, garantindo-lhes alimentação e educação e trazendo-os para o paço onde os mesmos cresceram.

Reza a lenda que, num dia em que o próprio rei a informou de que iria visitar umas amigas num convento situado numa zona próxima de Lisboa, foi ela própria quem lhe respondeu “Senhor… ide vê-las” tendo dado origem ao topónimo Odivelas.




Profundamente devota e dedicada às causas sociais, são também conhecidos vários arrufos com seu marido que, preocupado com o rombo nos cofres reais, via com maus olhos o desvelo com que ela tratava os mais pobres e necessitados, a quem oferecia pão e dinheiro a título de esmolas que lhe granjearam fama de santa ainda em vida. Foi de um desses episódios, aliás, que nasceu a sua lenda mais conhecida – a Lenda das Rosas – que romanticamente se espalhou em Portugal e que acabou por influir largamente na definição do espectro da espiritualidade nacional.

Reza a lenda que, numa manhã fria de Janeiro, a rainha saia do paço carregando pão para os pobres quando foi interpelada pelo rei que pretendeu saber o que é que ela transportava no regaço. Mentindo-lhe, a rainha disse-lhe que eram rosas que iria utilizar para alegrar os altares das igrejas da cidade. Estranhando a existência de rosas em pleno Inverno e principalmente naquela gélida manhã de Janeiro, Dom Dinis terá solicitado à rainha que lhe mostrasse o que transportava, e ela, largando das mãos o pão que escondia, deixou cair no chão um conjunto maravilhoso e muito aromáticos das mais bonitas rosas que se tinham visto por aquelas paragens… “São rosas, senhor!” foi a frase que ficou a marcar os arquétipos da crença nacional, corporizando um milagre de metamorfose alquímica que fui considerado como a prova máxima da sua santidade e sustento principal da sua beatificação (1516) e posterior canonização (1742).

Tendo tido uma profusa intervenção política em Portugal e em Castela, não só durante o período em que foi rainha mas também depois de viúva, interveio muitas vezes como mediadora em conflitos variados evitando a guerra e alcançando a paz entre os oponentes. O melhor exemplo aconteceu ainda durante a vida de Dom Dinis, quando este, dando preferência a um filho bastardo a quem pretendia deixar em herança o próprio Reino de Portugal, entrou em conflito com o filho legítimo, futuro Dom Afonso IV, tendo sido a rainha quem garantiu o alcançar da paz através de um processo de mediação que evitou aquela que possivelmente teria sido a mais sangrenta das guerras civis de Portugal.




Já muito doente, com a peste que matou centenas de milhares de pessoas em Portugal, deslocou-se a Estremoz em 1336 pra uma vez mais intervir num conflito que opunha o seu filho ao Rei de Castela. Faleceu no Paço Real daquela vila Alentejana, deixando escrita a sua vontade de que o seu corpo fosse sepultado no Convento de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, onde havia professado.

Tendo morrido em Julho, numa época de calor tórrido semelhante aquele que ainda hoje fustiga aquelas terras, foi preparado um caixão de chumbo para transportar o corpo na longa viagem que teriam de fazer até à Cidade do Mondego. Tentando evitar os cheiros resultantes da decomposição do corpo ao longo daqueles dias, o féretro foi reforçado e envolvido em vários tipos de panejamento e em perfumes de várias espécies.

Mesmo assim, mercê do calor que afectou o caixão durante o trajecto, este ter-se-á deteriorado com os gases libertados pelo cadáver da rainha e aberto algumas rachas por onde começou a sair um líquido espesso que muito preocupou muitos daqueles que acompanhavam o cortejo. Mas, para surpresa de todos, verificou-se que esse líquido deitava um cheiro maravilhoso a flores e não o mau-cheiro pelo qual todos esperavam…

Por ocasião do processo de canonização, já no Século XVIII, quando o caixão foi transportado de Santa Clara-a-Velha para Santa Clara-a-Nova depois de as águas do Mondego terem inundado por completo o antigo convento, o caixão voltou a ser aberto e perante a estupefacção de todos, verificou-se que o corpo se mantinha incorrupto e que o cheiro continuava a ser o mesmo aroma a flores que haviam descrito os participantes no primeiro cortejo praticamente quatro séculos antes.

Na actualidade, com muitos devotos espalhados por Portugal e por Espanha, a Rainha Santa Isabel é venerada a 4 de Julho, dia da sua morte, sendo a sua mão exposta pontualmente para que possa ser vista por milhares de interessados.

Rainha, mulher e santa, Isabel de Aragão é uma das figuras incontornáveis da História de Portugal. Na sua vertente mística, associada a processos complexos de uma originalidade sem igual, extravasou largamente o seu tempo e espraiou a sua influência ao longo de muitas gerações que foram cruciais no desenvolvimento na afirmação e na sobrevivência de Portugal.

A sua veia alquímica, suportada pelo controle efectivo da organização da matéria, visível no Milagre das Rosas e na incorruptibilidade do seu corpo venal, representa o êxtase máximo que se pode associar à magia deste País tão especial…

Vale a pena conhecer, compreender e interiorizar. Porque a Rainha Santa Isabel ajuda a perceber Portugal. 



quarta-feira

As Cheias em Cascais - 19 de Novembro de 1983




Cumprem-se hoje 31 anos desde que Cascais amanheceu coberta de água. Naquela madrugada, numa noite de Sexta-feira para Sábado, preparava-se mais uma manhã de mercado saloio no centro da Vila. Por todo o lado, num cenário dantesco no qual o caos imperava, fluíam ao sabor das águas os sacos de batatas, as caixas de legumes e mesmo os carros e carrinhas que os transportavam. Naquela manhã, mesmo perante o pânico que estava instalado, ouviram-se desde cedo o som dos motores dos barcos que aproveitaram a situação para roubar lojas e casas. Ao mesmo tempo, na actual Praça Francisco Sá Carneiro, um casal de idosos morreu enquanto tentava desesperadamente serrar com uma faca de cozinha as grades que poucos dias antes havia mandado colocar nas suas janelas...  31 anos depois, aqueles que tiveram a infelicidade de acordar rodeados de águas, sem electricidade, telefone ou qualquer outro tipo de comunicação, ainda sentem no ar o cheiro putrefacto que emanava daquelas águas lamacentas. Nalguns recantos da vila, dentro de casas e em muros que ninguém imaginaria que algum dia estiveram submersos, ainda hoje se podem ver os restos das lamas que o dia 19 de Novembro de 1983 trouxe para Cascais. 













Fotos Recolhidas em Real Villa de Cascaes no Facebook

segunda-feira

O Convento dos Capuchos em Sintra




por João Aníbal Henriques

São raros os espaços assim que, extraordinários e impactantes, não estão associados à monumentalidade das suas construções mas sim à singeleza levada ao extremo. É o que acontece no Convento dos Capuchos, em Sintra, onde a força da natureza de cruza com a vontade do homem para recriar um espaço que apela ao sonho e à vida, ao mesmo tempo que acorre aos desígnios que a carne impõe ao homem…

Embrenhado nas penhas antigas que dão forma à Serra da Lua, o Convento dos Capuchos, também conhecido como Convento da Cortiça, recria-se a partir da solicitação da pobreza extrema e do despojamento total que caracterizava os seus mais antigos habitantes.




Construído em 1560 por Dom Álvaro de Castro, em cumprimento de um voto formulado pelo seu pai D. João de Castro, Vice-Rei da Índia, que por ali adormeceu durante uma caçada e que terá sonhado com a criação de um pedaço de céu neste recanto inóspito da serra, o Convento dos Capuchos associa o fulgor da natureza, com as suas pedras e penhascos envolvidos em vegetação que romanticamente o envolve, com os mais profundos sonhos e anseios da humanidade.

Para lá entrar, passando um portal de sombra que nos verga perante a cruz, é necessário abandonar as paixões do mundo e das coisas, de forma a tornar possível abraçar por completo os desígnios mais profundos da divindade. Lá estão, aliás, o portal com a caveira e as duas tíbias cruzadas que, encimando a porta que sai do terreiro do sino para entrar no espaço conventual, simboliza a morte em vida e o triunfo desta última sobre as funestas sombras da morte…




E lá dentro, no estreito e obscuro corredor que dá acesso à luz interna, ficam as memórias daqueles que se enterraram vivos, entregando a Deus o seu insignificante corpo em busca da gloriosa apoteose da vida verdadeira, ou seja, daquela que é imortal e que surge livre das peias constrangedoras da carne.

Pobre, sombrio e frio, ao ponto de causar estranheza a possibilidade de se viver assim, o convento obriga-nos constantemente a baixar a cabeça. Fazemo-lo para entrar nas celas conventuais, na sala do capítulo, na sala de jantar ou nas cozinhas, num acto de reverência perante Deus e num ritual de humildade em linha com o ideário Franciscano que dá forma à Ordem que por ali prevalece.

Por todo o lado, cumprindo a sua obrigação de gritar bem alto que o crucifixo é uma realidade passageira, obviamente necessária para que a carne faça sentido, mas necessariamente transitória no percurso maior em direcção a Deus, lá está a rosa-cruz, espécie de roda em eterno movimento que grita bem alto a Boa Nova e a ressurreição de Cristo Nosso Senhor.




Mas são muitos e variados os motivos de interesse deste espaço excepcional. Desprovida das expressões mais vulgares da arte e da ostensiva presença de um espólio enriquecido pelos muitos séculos de boas-práticas que aquelas paredes já viram, a cerca é um autêntico cadinho de maravilhas naturais, numa simbiose perfeita entre a força da natureza e a vontade de Deus. Ninguém fica indiferente à decoração em cortiça, que enche por completo cada canto e recanto daquele espaço conventual, nem tão pouco à labiríntica disposição dos seus longos corredores, dispostos com naturalidade em torno da formulação das penhas ancestrais que a natureza por lá deixou.

Neste convento, perdido num tempo que se constrói a partir da inexistência do tempo, viveu durante muitas décadas o célebre e mítico Frei Honório que, de acordo com a lenda, se penitenciou durante trinta anos numa gruta inóspita existente na cerca, por ter cedido à tentação perante uma mulher que lhe havia sido enviada pelo maligno para o deter. A pé e água, lá terá sobrevivido até aos cem anos, tendo como companhia exclusivamente a paisagem magnífica da Várzea de Sintra e o frio cortante que constantemente bate o local, carregando as penas de quem por lá estiver. Mas era isso que procurava Frei Honório. A libertação do corpo em defesa de uma Alma pura e liberta das teias e tentações que a carne faz prevalecer.




É de deslumbramento total e permanente uma visita ao convento. Porque ali encontramos os arquétipos ancestrais que dão forma à nossa forma de ser e de pensar, ansiando na Terra pela descoberta do caminho em direcção ao céu. Filipe II de Espanha, o todo-poderoso rei que uniu Madrid e Lisboa num mesmo trono controlando um Mundo inteiro sob o seu ceptro, escreveu às suas filhas depois de visitar o convento dizendo que existiam duas maravilhas no seu reino: o Escorial, em Espanha, e o Convento dos Capuchos, em Sintra…

Pouco se pode dizer sobre esta preciosidade do património Português, até porque a singeleza que o caracteriza apela ao deslumbramento e à espiritualidade que é sempre superior às palavras e ao talento necessário para as transformar na montra que é necessário fazer. Mas é, certamente, um daqueles locais que vale a pena visitar nem que seja uma vez na vida, até porque quem lá entra, desde que o faça com a capacidade crítica de entendimento do espaço e de todos aqueles que por lá viveram, recuperará certamente uma vida nova em linha com a ideia de um paraíso terreal que todos gostaríamos de conhecer prevalecer.
















O Estado da Anestesia em Portugal



por João Aníbal Henriques

Rebentou na última semana um dos maiores escândalos de sempre em Portugal. Com mais de uma dezena de envolvidos escolhidos de entre alguns dos mais altos funcionários do Estado, este escândalo mostra aos Portugueses um novo nível de corrupção, mais em linha com um qualquer romance de cordel do que com a triste história que actualmente caracteriza este país em que vivemos.

Infelizmente, depois do enredo que envolveu o mais escandaloso início de um ano lectivo em Portugal; da incrível estória protagonizada pelo Ministério da Justiça e dos seus inventados sabotadores encomendados que paralisaram os tribunais e a própria justiça durante muitas semanas; do extraordinário caso de falência do Grupo Espírito-Santo, com as incompreensíveis intervenções do Banco de Portugal, do Governo e do Presidente da República; da odorífera facada nas costas dada no líder do PS pelo seu correligionário socialista que ainda é presidente da Câmara Municipal de Lisboa; da cisão absurda e tremenda na já de si liderança bicéfala do Bloco de Esquerda; da maravilhosa estória da decisão irrevogável do Presidente do CDS; do abrasileirado escândalo da destruição da Portugal Telecom, acompanhado pelos prémios chorudos que foram dados aos que cavaram a sepultura daquela empresa estratégica para Portugal; de um Presidente da República que tibuteantemente mostrou não estar interessado em intervir directamente nos destinos do nosso Estado e de um Governo que assobia alegremente perante o descalabro geral que caracteriza Portugal, pouco ou nada resta para dizer, pensar ou discutir neste nosso desgraçado país…

A dose de irrealismo, que dantes se comparava ao caos que se instalou durante a primeira república mas que actualmente já o ultrapassou largamente, transformou Portugal numa espécie de grande arena de circo na qual tudo pode acontecer.

Já ninguém se espanta, nem ousa sequer criticar ou contrariar as desvairadas decisões de quem detém o poder. Para quê?...

E, se a nível estatal as coisas atingiram um descrédito que é transversal a todos os partidos e a todos os sectores de actividade, a nível local a situação não é diferente. Presidentes de câmaras legitimados pelos votos das eleições de 2013, põem e dispõem da coisa pública como se ela fizesse parte do seu pecúlio pessoal. Os balcões das empresas municipais, repletos de faces airosas oriundas das juventudes dos partidos onde trabalharam gratuitamente em troca de um emprego, são uma espécie de pastos onde a maralha divide o pouco que Portugal ainda consegue produzir.

E quem pode pensar em criticar esta gente? Ninguém! Pois se é tudo assim… se todos fazem o mesmo… se ninguém assume as consequências dos seus actos e se à boca cheia se regurgita a máxima de que quem não come é parvo!...

O certo, para alguém que ainda gosta de Portugal e que acredita que ainda é possível salvar a herança que recebemos dos nossos avós ao longo de mais de oito séculos, é que já pouco ou nada há a fazer. Pelo menos de dentro desta máquina de devastação onde os equilíbrios são precários e as dependências são transversais a toda a gente.

Entretanto, enquanto lá fora as estações vão passando, cruzando eleições futuras com os muitos interesses que todos sabem que dão forma ao nosso Estado, continuam um espectáculo deprimente que todos somos obrigados a ver e a financiar.

Os Portugueses estão anestesiados, incapazes até de reagir ao que no estão a fazer. E ainda bem que assim é! Porque senão seria insuportável a dor perante o desrespeito atroz perpetrado por esta gente.


Não vale a pena! The show must go on! Já não há nada que se possa fazer… 

A Casa dos Expostos de Cascais



por João Aníbal Henriques

Abordar a História de Cascais, numa primeira vista, pressupõe a menção a um infindável rol de nomes, mais ou menos importantes, ou de personalidades que viveram ou desempenharam as suas funções profissionais neste concelho. Para além destes, em alguns casos, fala-se também de conhecidas confrarias e corporações, que deixaram marcas profundas e de  grande relevo no desenvolvimento histórico da localidade.

No final do século XVIII, quando Portugal assumiu por fim a necessidade de congregar esforços no sentido de precaver a nação contra os infortúnios alheios, foi criada em Lisboa, de acordo com as ordens de Pina Manique  e as directivas da Rainha D. Maria, uma instituição de caridade denominada «Casa dos Expostos». Cascais, como peça fundamental do devir histórico da época, não esteve alheio a esta questão, decorrendo pouco tempo até que em aqui se instalasse um organismo semelhante.




De acordo com as informações de Carlos Andrade Teixeira, ilustre Cascalense, a Casa dos Expostos de Cascais teria sido criada no ano de 1822, recebendo no dia 27 de Julho uma primeira criança do sexo masculino, que foi posteriormente baptizada com o nome de Prudêncio e que viria a falecer um ano mais tarde.

A casa onde funcionava a "Roda", situava-se numa pequena edificação saloia na Travessa da Nazaré, e que ainda hoje existe embora muito alterada na sua formulação urbanística original, e estava munida de uma roda de madeira, que girava em torno de um eixo central, de modo a que as crianças enjeitadas pudessem ser colocadas no seu interior, sem qualquer espécie de identificação da pessoa responsável pelo acto. Depois, as crianças passavam rapidamente para as mãos de uma ama que as recolhia e que, a expensas do estado, promovia a sua educação durante os primeiros anos de vida.

As amas de Cascais, também elas figuras humildes e dedicadas ao ofício pelas necessidades financeiras, tinham obrigatoriamente de ser moças casadas e minimamente preparadas para o desempenho das suas funções, tal como se pode ler no despacho geral do intendente: «[...] moça casada, fecunda, bem constituída e aceada, a qual se conservará enquanto for possível;».

Se do ponto de vista psicológico o abandono de crianças nos últimos anos do século XVIII parece ser um aspecto ímpio da vivência portuguesa, por outro a instituição da Casa dos Expostos ou da Roda, é também ela evidenciadora de um sentido novo que emanava dos órgãos de estado portugueses. Estas crianças, que ganhavam assim uma oportunidade para se manterem vivas, embora em condições de extrema pobreza, estavam destinadas quase sempre a uma morte a prazo. Os cuidados de saúde daquela época, bem como a motivação que levava à candidatura das amas àquele cargo, determinava quase sempre a morte prematura do abandonado, que se sujeitava, sem que qualquer culpa lhe fosse formulada, a todas as vicissitudes que ordenavam a vida da Rodeira. Este problema, indiciador de uma certa sensibilidade por parte das entidades públicas Portuguesas, é também ele evidenciador de outras questões: Como é óbvio, a preocupação fica certamente a dever-se ao elevado número de crianças abandonadas, evidenciando um clima de instabilidade moral que grassava no País nessa época...




Numa perspectiva patrimonial, e porque a Casa da Roda de Cascais ainda se mantém no seu sítio, importante seria a recuperação integral daquele espaço. A manutenção da antiga Roda no centro da vila, indiciadora de todos os problemas económico-sociais anteriormente mencionados, é um excelente exemplo crítico de uma sociedade que não se encontra ainda muito longe de nós e que poderia contribuir para o reforço da atractividade da Vila de Cascais.

As características arquitectónicas do imóvel, perfeitamente enquadráveis na tipologia corrente no núcleo histórico da vila de Cascais, permitiram a subsistência de uma componente da memória colectiva que muitas vezes é delegada para segundo plano. A compreensão da história do município Cascalense, bem como da forma como se constituíram, programaram e delimitaram as funcionalidades urbanísticas deste espaço, ficaram a dever-se a componentes sociais e psicológicas que são levadas em conta na sua constituição e que poderiam ajudar-nos a perceber melhor a forma como funcionava a estrutura social desta nossa terra.

O centro histórico de Cascais, com as ruelas envolvidas em sombras escuras e húmidas, é o resultado da interacção da geografia, do urbanismo pré-existente, mas também dos condicionalismos sociais que deram forma à comunidade Cascalense. 

Desconhecida por quase todos, a Casa dos Expostos de Cascais é um exemplo da potencialidade patrimonial deste concelho, desaproveitada e tristemente votada a uma anomia que tanta insatisfação latente vai consolidando em torno de um identidade há muito deturpada pelos interesses específicos e particulares daqueles que nos governam.

Uma tristeza!

O Muro de Berlim 25 Anos Depois




por João Aníbal Henriques

Parece impossível, inverosímil e inaceitável! Mesmo quem percorre as ruas do centro de Berlim, aceitando o horror do que ali se passou durante a II Grande Guerra e que ainda se sente, tem dificuldade em aceitar que há tão pouco tempo tenha sido possível à capital de uma das mais importantes nações da Europa viver dividida num regime de terror que contraria os mais elementares princípios do respeito pelo homem… e no entanto, apesar de tudo e de todos, das memórias bem vivas que se preservam nas vidas daqueles que ali sofreram estas atrocidades, e de toda a evolução que a Europa conheceu ao longo das últimas décadas, passaram-se apenas 25 anos desde o início da demolição do muro da vergonha. Foi ontem…



É quase impossível, para quem viaja carregando a sensibilidade humanista natural na nossa sociedade ocidental, visitar a capital da Alemanha sem se transtornar com as memória sentidas que transbordam a cada recanto daquela cidade tão especial.

À primeira vista, para quem gosta da história e de tocar os mesmos monumentos e espaços tocados por outros ao longo dos milénios, Berlim não é a cidade ideal para uma viagem de recreio. Mas isso é só à primeira vista. Apesar de ter sido quase completamente arrasada em 1945 durante os bombardeamentos que puseram fim à II Guerra Mundial e ao ciclo de terror imposto pelo III Reich nazi, parece que as pedras que reconstruíram a cidade carregam consigo as memórias terríveis que encheram de dor, sofrimento e consternação aquele espaço.



Em cada canto que se visita, lá estão ainda os ecos dos passos ignominiosos do Führer e as sombras cáusticas dos milhões de homens, mulheres e crianças que caminharam aterrorizados para uma morte atroz e inconcebível. Os monumentos, as casas e as ruas, todos novos e alguns deles com pouco mais de década e meia de existência, não foram capazes de se limpar destas emoções e elas envolvem-nos, num limbo de nojo e de amargura que é maior do que as palavras utilizadas nos muitos guias turísticos que por lá se vendem, e que tornam única uma visita atenta a este local emblemático da Europa onde hoje vivemos.

Construído a partir de 1961, como consequência do agravamento das relações muito tensas que resultaram da divisão da cidade pelos aliados ocidentais e soviéticos depois do final da guerra, o muro de Berlim era uma realidade física com mais de 156 kms de comprimento e cerca de 300 torres de vigilância que literalmente dividiram a cidade e os seus habitantes, separando famílias e reforçando a dor da qual a Alemanha não tinha conseguido recuperar depois das atrocidades da guerra.

De um lado, o sector ocidental, Berlim era essencialmente Americana. Orientações urbanísticas que promoviam a democracia, com edifícios de vidro e superfícies transparentes, amplos jardins verdejantes e centros-comerciais cheios de marcas internacionais, transformaram a cidade num dos mais cosmopolitas centros da Europa de então. Livres e seguros da sua vida, os Alemães ocidentais, constitucionalmente integrados na República Federal Alemã, viviam numa economia de consumo, no qual o liberalismo americano estava omnipresente, num ambiente de ostentação e consumismo que contrastava largamente com aquilo que se passava do outro lado.

No sector oriental, vigiados 24 horas por dia e controlados nos seus mais insignificantes movimentos, os Alemães apartados à força dos seus familiares ocidentais, sobreviviam à sombra de uma economia de fachada, envolvidos na pobreza de quem não é livre para escolher os passos que dá, e siderados pelas forças militares de um regime soviético que cumpria ordens estrangeiras originadas directamente no Kremlin.
O contraste era tão grande e a separação tão efectiva, que os Alemães de cada um dos lados desconhecia basicamente a forma como viviam os do outro lado, criando uma série de estórias e de lendas que, de lado a lado, foram envolvendo os outros numa aura de ficção extremada que os tornou em gente efectivamente diferente.



Mas há 25 anos, em Novembro de 1989, tudo mudou inesperadamente. Como consequência do enfraquecimento soviético e da consequente diminuição da opressão militar imposta pela guerra fria, os Alemães de leste ousaram insurgir-se contra o regime em que viviam. Esperava-se sangue e terror imenso, em linha com aquilo a que a idade já estava habituada, mas nada disso aconteceu. Naquela manhã do dia 9, saindo das suas casas a pé e de bicicleta, milhares de berlinenses saltaram o muro e abraçaram os seus familiares com os quais tinham perdido o contacto há já tantos anos. E não aconteceu nada a ninguém.

O muro caiu, de forma tão expressiva e emblemática e carregou consigo um mundo novo e diferente e uma Europa necessariamente mais forte a pujante. Tal como é inconcebível a sua construção, e o modo como o chamado ocidente aceitou a situação ignóbil que esse monumento criou, inconcebível é também a sua demolição, num movimento natural de reaproximação que embora marcado pelas feridas insanáveis que ainda hoje por lá vemos, se impôs ao Mundo como se de uma realidade natural se tratasse e como se aquele momento, acompanhado ao vivo e em directo por biliões de pessoas em todo o lado, mais não fosse do que um mero exercício experiencialista igual a tantos outros que se foram fazendo…




Vinte e cinco anos depois, é pungente passear em Berlim. Tendo desaparecido quase completamente, demolido e vendido em peças aos milhões de turistas que imediatamente invadiram os monumentos antigos que a URSS reconstruiu de fora exemplar depois da guerra, o muro é como se ainda lá estivesse. As pedras que colocaram para marcar o local onde se erguia, são um testemunho demasiado pesado por quem ali passa pela primeira vez e é impossível calcorrear aquela linha sem expressar a questão retórica que enche a boca de toda a gente: como foi possível?

Como foi possível aquilo que ali aconteceu? Como foi possível que o Mundo inteiro tenha sido complacente com uma realidade daquelas? Como possível que a Alemanha, ainda hoje a gemer lacrimosamente com as feridas que lhe foram impostas por duas grandes guerras, tenha sido capaz de se reconstruir, de fomentar equilíbrios novos e diferentes, e de promover um dia-a-dia no qual o bem-estar é parte integrante.




É certo que as memórias do Reich permanecem bem vivas naquela cidade. Apesar de as suas casas, edifícios e monumentos terem desaparecido quase completamente. Mas também é certo que para os Alemães que ali vivem, transformando memórias em negócios evidentemente florescentes, viveram eles próprios mais de 40 anos de terror ninguém compreende.

Berlim não apagou ainda as memórias das suas guerras, tal como ainda transpira com o suor do terror soviético. Mas fá-lo como se isto se tivesse passado há 5 séculos e não, como infelizmente sabemos, há apenas 25 anos. Ontem…