segunda-feira

O Drama da Igualdade na Democracia em Portugal: Proposta de Revisão do IRS




Complexado e comprometido com a história recente do País e com os avanços e recuos que Portugal vem conhecendo desde o 25 de Abril, o poder político que temos já nos habituou às ideias-feitas e às grandes parangonas que surgem normalmente com o propósito de serem populares e de ajudarem a ganhar eleições.

Desta vez, propõe-se uma reforma do IRS que assenta numa pretensa igualdade entre os cidadãos…

Procurando alcançar uma linearidade na cobrança deste imposto que permita fomentar a ideia de justiça e aumentar de forma significativa o universo fiscal, propõem-nos a criação de um conjunto de plafonds fixos para as deduções do IRS, nomeadamente nas áreas da saúde e da educação, garantindo assim que, independentemente da existência ou não de despesa, o Estado considera um valor determinado para efeitos de abatimento à colecta.

Teoricamente bem-intencionado, este projecto configura, no entanto, o que de pior existe na democracia que temos em Portugal. Ao assumir que todos somos iguais, até na doença e na escola, o Estado determina à cabeça os gastos que cada cidadão pode fazer homogeneizando procedimentos e a vida dos Portugueses.

Ou seja, entrando em vigor esta proposta, o Estado passa a assumir um valor fixo para a saúde de cada cidadão. Sem ter em conta se ele está ou esteve doente, ou se utilizou ou não os serviços de saúde que o Estado coloca ao seu dispor. E quem ganha com esta pseudo-igualdade: obviamente os que têm saúde de ferro, prejudicando aqueles que, por qualquer infelicidade, estiveram doentes. Com este modelo, tendo todos direito ao mesmo desconto, podemos considerar que o abatimento à colecta é um bónus para quem teve saúde, que vai deduzir uma determinada verba que nunca chegou a pagar! Da mesma maneira que se transforma numa penalização para quem teve a pouca sorte de ter estado doente, e que vai usufruir de uma dedução semelhante à do saudável independentemente do que teve de gastar para se tratar durante o ano!

Quem utilizou os serviços de saúde verá reembolsada uma parte dos seus gastos. Quem não utilizou, é reembolsado na mesma e poderá ir de férias com os contribuintes a pagarem as mesmas!

Mas na educação a situação é ainda mais grave.

Estabelecendo um plafond de deduções em função do número de dependentes que cada contribuinte tem a seu cargo, o Estado atribui a todos por igual uma verba que será reembolsada a partir dos cofres públicos independentemente dos custos associados à efectiva frequência da escola.

E se quem opta por uma escola estatal vê assegurado, dessa maneira, um valor determinado que já sabe que lhe será entregue, quem opta por um projecto educativo num estabelecimento de ensino privado, acaba por receber do Estado um valor exactamente igual ao primeiro. Ou seja, será duplamente tributado, porque pagará a escola do Estado com os impostos que paga regularmente e pagará também as mensalidades referentes à escola que escolheu, sem que isso seja tido em conta nos cálculos que o fisco lhe vai fazer.  

Na prática, com a definição destes escalões, beneficia-se uns independentemente do que gastaram e prejudicam-se outros por terem ousado escolher para os seus filhos uma escola diferente daquela que o Estado lhe escolheu.
E acima de tudo, consagra-se a ilusão de que somos todos iguais e que queremos todos o mesmo, assumindo-se o Estado como a entidade que se arroga ao direito de escolher o que fazem e o que gastam os Portugueses.

Representa um atestado de menoridade que assenta na inexistência do direito de escolha e que, dando forma à mole humana que alguns querem que sejamos, impede a determinação e coarcta a liberdade dos Portugueses.

quinta-feira

A Cidade Muçulmana – Esboço Historiográfico do Urbanismo Islâmico na Europa




por João Aníbal Henriques

Ao contrário do que pretenderam fazer crer algumas correntes historiográficas de outros tempos, a chegada dos muçulmanos à Península Ibérica foi sinónimo de riqueza, prosperidade e desenvolvimento. A destruição por vezes resultante dos confrontos que possibilitaram a conquista, era imediatamente substituída pelo esforço reconstrutivo dos novos senhores, bem patente na forma como a grande maioria das estruturas cristãs pré-existentes se mantiveram, apesar de alterações de pormenor relativamente ao culto e ao ritmo de vida que nelas se praticava. No caso já mencionado de Sintra, Concelho a partir do qual se constituiu, já no Século XIV, a independência jurídica de Cascais, essa forma de estar e de constituir a cidade é bem visível, conforme se pode vislumbrar nas palavras eloquentes de Sérgio Luís de Carvalho (4): “Assim se instalaram os árabes na região de Sintra a Colares, moldando duas povoações onde bem patente se observava a pujança de uma natureza no seu esplendor, e onde se desenvolvia o «amor pela liberdade», timbre de caracteres nobres. Aí implantaram as suas quintas, com seus pomares e vinhas, com seus riachos e fontes, as chamadas «almoínhas» (do árabe al-munya), tão frequentes nos contratos medievais sintrenses. Sem prejuízo de considerarmos as esparsas habitações que na zona já existiam, e sem olvidar alguma ocupação humana desde imemoriais tempos na zona (ver a propósito os estudos mais recentes de Cardim Ribeiro), o que a nós se nos afigura certo é que a «urbe» como tal, é de assentamento muçulmano. E deste modo, chegou à região de Sintra a civilização árabe; e desde modo foi edificado na própria vila o Paço de Sintra, morada dos «walis» (governadores), testemunho maior dessa mesma civilização, marca desse fulgor artístico por todos ao tempo reconhecido”.

O esforço de desenvolvimento da cidade por parte do ocupante muçulmano, oferecendo-lhe um esplendor que raramente o anterior senhor cristão se vira habilitado a conferir-lhe, fez dos povoados que se criaram ou se adaptaram nesta época, uma espécie de modelos urbanos, nos quais as diversas actividades do quotidiano, se arrumavam em parcelas e espaços que fomentavam a especialização e a organização sistemática. Mesmo não usufruindo de um rigor de planeamento que as ajudasse a criar uma tipificação rígida, as orientações programáticas oferecidas pelo Corão são normalmente suficientes para recriar na cidade muçulmana, um ambiente comum que lhes confere um romantismo sem igual. Na obra já mencionada, e depois de calcorrear o conjunto sinuoso das velhinhas ruas sintrenses, nas quais a falta de regra e de objectivo parece um aspecto remanescente, o autor da “História de Sintra” explica em termos mentais e culturais a forma como se processava o surgimento da dicotomia urbana sintrense: “Falemos claro: as cidades muçulmanas de um modo geral não possuem um plano inicial de base, nem se desenvolvem de acordo com qualquer esquema estabelecido. Para o islâmico, o espaço privilegiado não é a rua, mas a casa. É aqui que o crente reza, jejua, medita e descansa; é aqui que vive a intimidade da sua intimidade e repouso. A rua torna-se meramente o espaço de comunicação entre casas, tanto mais dispensável quanto mais soalheira é. Não é na rua que os crentes convivem quando necessário, é na mesquita, ponto sempre central de qualquer urbe; não é na rua que as mulheres convivem, é no recato dos pátios interiores, longe dos olhares forasteiros e perto dos regatos frescos”.




As actividades comunitárias, essencialmente masculinas pelas características próprias de uma religião que se fecha no essencial das palavras do profeta, são assim relegadas para um plano secundário na cidade muçulmana. O comércio e o mercado, fundamentais numa região como a da várzea sintrense, onde a produtividade era enorme, e o excedente permitia alicerçar uma excelente relação com a capital em Lisboa, processava-se em torno do recatado confronto de saberes dos anciãos de cada família. A  especialização familiar, com cada membro a representar um papel bem definido e assaz complementar em relação aos desempenhados pelos restantes, determinava que a forma de organização da cidade fosse pouco importante para a rentabilidade do negócio.

A compra a venda de produtos, bem patente, ainda hoje, nas milenares feiras e romarias que existem em espaços onde a ocupação muçulmana foi efectiva, faz-se essencialmente no mercado público, sem estruturas especializadas neste tipo de actividade, ou de forma ambulante, de casa em casa, do recato individual da família, para situação idêntica do vizinho mais próximo. 

A figura do saloio, ainda hoje conotado com o ocupante islâmico das envolvências da capital, é em si mesmo o repositório mais fidedigno da organização comercial que regia as urbes de origem magrebina. O pão saloio, o queijo saloio, e os demais produtos ligados e relacionados com esta forma cultural, identificam uma forma de estar e de ser que se manteve incólume neste País durante quase novecentos anos. A componente comercial da vivência saloia, num termo de Lisboa que assim caracterizava todos aqueles que compravam e vendiam os produtos agrícolas e hortícolas, conferia ao saloio uma autonomia que lhe permitia rentabilizar os seus tempos livres.




Na cidade muçulmana, mais do que nas antigas urbes cristãs, o acto de comprar e vender associava-se em permanência ao culto que acompanhava a generalidade das actividades do magrebino. Num dos seus interessantes artigos sobre a génese da portugalidade, Teresa Mesquitella sublinha que o carácter saloio estava vinculado também à actividade comercial que em permanência se exercia neste tipo de espaços. Segundo esta autora, o tempo de lazer do saloio é dedicado às feiras e às romarias, facto que consolida uma forma alternativa de vivência comercial que se instituirá nesta altura e se propagará ao longo dos séculos até à actualidade (5): “[...] ali se vende de tudo, do gado aos cestos, das alfaias agrícolas, legumes, enchidos, queijos, ovos, pão, bolos saloios, sementes, frutos, flores para plantar, cravos, amores perfeitos, ligam-se com fetos, apertados num cordel, para manter a humidade. Patos, galinhas, perus, há de tudo um pouco. Azeitonas, tremoços, etc.”




De facto, e sobretudo se nos ativermos àquilo que são as bases da culturalidade muçulmana, depressa perceberemos que, com excepção das actividades de lazer e comércio descritas por Teresa Mesquitella, muitas delas cristianizadas algum tempo depois e vinculadas a práticas que ainda hoje se mantêm quase incólumes, muito pouco sobrava de liberdade social ao indivíduo árabe para estabelecer relacionamentos que contribuíssem para a generalização da sua identidade. A prática do comércio, bem como de serviços análogos que revertiam em prol do crescimento social dessa cidadania, traduzia-se amiúde na recriação de uma forma diferenciada de gestão de conflitos, que se exercia de forma plena sempre que se estabeleciam as bases vigorosas de um novo entreposto urbano.

À cidade muçulmana, eivada das consequências lógicas impostas por uma História já muito antiga que havia caracterizado a existência dos povos que habitavam na Península Ibérica, juntam-se agora balizas sociais muito fixas, que necessitavam da harmonia imposta pelo relacionamento muitas vezes vilipendioso que resultava da prática do comércio, para fazer regurgitar a tendência sempre presente, embora muitas vezes de forma velada, de harmonizar condutas em função de um sentimento de partilha que se baseava no próprio espaço.

As estruturas orgânicas do poderio muçulmano, em permanência vincadas pelo estímulo municipalista que as antigas villae acabaram por promover, reconverteram a funcionalidade meramente circunstancial do povoamento paleo-cristão numa forma nova de existência de base política. Neste novo espaço, bem como nas zonas francas criadas por uma tolerância da prática religiosa que se afigurava essencial para garantir a paz e a estabilidade necessárias ao sustento do aparelho produtivo criado pelos novos invasores, o cosmopolitismo e o plurifacetado proselitismo de todos os que habitavam no novo império, permitia rentabilizar diferenças e recriar um ambiente novo que absorvesse as bases culturais de todos e aproveitasse o vasto espaço comum criado pelo poderio vigente para desenvolver económica e financeiramente a generalidade dos habitantes.




No antigo espaço senhorial que havia subsistido ao declínio do Império Romano, reinava agora uma enorme amálgama de poderes políticos, agregados, cada um deles, à génese cultural e religiosa de todos os povos e etnias que ali viviam, e assegurando uma cada vez maior necessidade de fomentar a gestão global da res-pública, como único caminho para gerar os tais consensos e promover a tão necessária harmonia. Os concelhos de raiz visigótica, por sua vez decalcados das antigas villae romanas, haviam-se tornado em entidades com cunho vincadamente jurídico, nas quais se processavam toda a espécie de decisões que tinham como objectivo manter os equilíbrios internos das comunidades, e zelar pela salvaguarda dos interesses colectivos da sociedade. 

Para além da complexidade que naturalmente envolve a constituição social de um espaço urbano, pois a conjugação de saberes e de vontades implica sempre a sujeição de princípios e de valores comuns, outros problemas, muitas vezes esquecidos dos investigadores, contribuem para dificultar uma análise verdadeiramente operativa deste conjunto de problemas.

Como é evidente, mesmo dentro dos actuais espaços urbanos, a noção e o conceito de família, assumidamente núcleo central da operacionalidade social, alteram amiúde a forma como se sustêm os processos governativos da urbe. Na cidade muçulmana, génese residual da cidade actual, a motivação social suportou sempre um conjunto de princípios económicos que esventraram grande parte das motivações teóricas de constituição das cidades apontadas pelos investigadores.




De facto, mais do que os rigores impostos pela contratualização religiosa, a dinâmica orientadora da construção e regulamentação dos espaços urbanos, obedeceu primeiramente a critérios de índole economicista. Só assim, entendendo a economia como suporte intrínseco da capacidade de concretização dos diversos aspectos de génese cultural ou cultual destas comunidades, é que se torna possível compreender a forma como se orientaram em termos efectivos as diversas medidas de governação da cidade. 

A doutrina política do islão, exigindo capacidade e eficácia nas concretizações do dia-a-dia, coíbe assim a cidade de se estender por domínios que impeçam a sua operacionalidade. As cidades muçulmanas, monótonas na forma como repetem de maneira incessante e estereotipada os ritmos e padrões de construção urbana que em nada deixam transparecer os diferentes registos culturais dos locais onde se inserem, rasteiam também grande parte das necessidades dos seus naturais e recolocam-nas na amálgama por vezes conflituosa do seu tecido urbano. Segundo Fernando Chueca Goitia, numa das mais sucintas abordagens à História do Urbanismo (6) a indiferenciação da cidade muçulmana fica a dever-se principalmente a essa razão prática, sublinhando que as consequências desta situação, sobretudo no que concerne à prática do comércio, são por demais evidentes: “De todas maneras, el aspecto de la ciudad musulmana es mucho más indeferenciado que el de la ciudad clásica y de la ciudad moderna. Una ciudad cuanto más compleja funcionalmente, más diferenciada resulta en sus estruturas. De aquí la monotonía de las orientales, en esto herederas de las urbes prehelénicas. El mundo islámico recoge buena parte de la herencia del mundo primitivo orientale, de las ciudades egipcias y mesopotámicas. Si conociéramos mejor éstas, podríamos establecer más fácilmente cuál há sido el precedente y la génesis de las del Islam, que hoy nos parecem insólitas”.





A grande lição a retirar deste tipo de estrutura urbana, sobretudo se pensarmos que o modelo teórico da cidade muçulmana se espraiou por um império vastíssimo, no qual coexistiram de forma pacífica diversos tipos de culturas, de tradições e de saberes, é que o cerne económico que suporta a existência do burgo, ultrapassa largamente a envolvência física e a moldura humana que o acompanha. Nestas cidades, a prática comercial, ontem como hoje, reveste-se de uma simplicidade que permite ao produto comercializado impor-se como tal, ou seja, desvinculando-o de procedimentos conjunturais e oferecendo-lhe uma importância que se basta a si própria.

A delimitação efectiva dos espaços, com a zona habitacional perfeitamente definida e com uma gestão que se poderia caracterizar como antagónica relativamente à zona comercial, contribui para que o comércio e o urbanismo surjam como realidades de gestão conjunta neste tipo de estruturas. Ao recriar, no seio da complexidade que as envolve, uma dicotomia perfeita entre o ambiente totalmente calmo e sossegado do espaço habitacional, no qual a família encontra todas as condições que lhe permitem fruir da sua intimidade, e o buliçoso espaço comercial, no seio do qual quase tudo é permitido, o islão impõe uma forma nova de estar na cidade que, complementando as faces diversas de uma mesma urbe, rentabiliza os verdadeiros assentos de cada uma das vivências, ao mesmo tempo que impede a criação de eventuais problemas resultantes de uma mistura forçada de interesses e de ideias. Na sua componente comercial, a cidade muçulmana faz jus à sua capacidade de se efectivar como fulcro das actividades quotidianas da população, enquanto na zona residencial, sem interferência com o barulho e com a necessária expressão que constrange o viajante, a paz, a calma e o sossego se transformam em elementos essenciais. Pierre George (7), numa das poucas obras sobre urbanismo europeu que dedica um espaço importante à organização da cidade muçulmana, traça com mestria o quadro típico desta dicotomia, ao mesmo tempo que explica como se organizam as duas componentes neste mesmo espaço: “El silencio y la calma hacen olvidar la extraordinaria acumulación de la población. Pero ésta se presenta com una exageración multicolor en el zoco, mercado de barrio o mercado general. Aquí aparece la outra faz del oriente, com su ruido de multitud y su olor acre de especias, polvo y sudor. Todos los pueblos, todos los tipos, parecem haberse dado cita: campesinas de Ghuta com amplios velos claros, rosa o azul pálido, hauraneses de cara tatuada y severo traje azul oscuro, judíos de Bagdad todos de negro, la cara bajo la visera a la moda de la Persia, beduinos del desierto envoltos en sua harapos y en su dignidad, curdos com turbantes multicolores, afganos vestidos de blanco, negros del Sudán en bubú y maghrebíes en su chilada”.

A especialização urbana das cidades muçulmanas, marcada de forma efectiva pela permanente troca de actividades e de costumes, era assim o garante da sã convivência entre os diferentes tipos de habitantes que nela residiam. Em torno da medina, espaço que tantas e tantas vezes é ainda hoje a base toponímica dos bairros mais típicos das actuais vilas e cidades portuguesas que tiveram uma origem islâmica, organizavam-se, no seio da aparente desorganização geral, os bairros residenciais e os arrabaldes. Enquanto na medina se situavam as principais e mais atractivas actividades da cidade, como por exemplo as mesquitas, as instalações do alcaide, e as zonas comerciais, nas restantes zonas da cidade a população agrupava-se de acordo com os seus ofícios e modo de vida. Esta forma de existência, mais do que qualquer outra formulação mais moderna de planificação urbana, garante um efectivo controle das tensões sociais e, contrariamente ao que actualmente alguns ditos especialistas procuram veicular, a uma maior capacidade de diálogo e de cooperação social.



A noção de gueto que tanto constrange as cidades actuais, ou seja, um espaço fechado onde se colocam as actividades ou as etnias que possuem características próprias ainda muito vincadas, é totalmente despropositada neste tipo de cidades. O espaço de especialidade, zona onde se concentram os habitantes e trabalhadores entre iguais, obriga necessariamente à criação de uma rede de permutas que diminua os problemas que resultam da inexistência de uma série de bens ou de produtos que só existem no espaço seguinte. O trânsito social, expressão que utilizaremos daqui em diante para designar a permanente migração de populações de raízes diferentes que coabitam num mesmo espaço urbano, obriga a um clima de convivência sã e de respeito mútuo que faz da cidade uma zona global onde todos podem encontrar a melhor forma de se fazerem entender. 

De qualquer forma, dentro da medina, a diferenciação de imediato se esbate no seio da amálgama de odores e de cores que vão caracterizando cada um dos habitantes. A prática do comércio, principal motor desta miscenização social, é assim a base e o sustento da criação dessa paz, sendo, consequentemente, a principal orientação para a criação da própria cidade.

Apesar do carácter pitoresco das estruturas urbanas legadas pelos primórdios da existência urbana deste império, a grande valia das cidades muçulmanas reside no seu dinamismo comercial, sendo nele que se funda a própria estrutura habitacional.




segunda-feira

Quanto Custam as Feiras, Festas e Festivais em Cascais?




Sendo certo que se forem bem geridos, os festivais e as feiras ajudam a colocar Cascais no mapa e a reforçar a sua visibilidade, importa saber quanto custam à Câmara Municipal de Cascais as sucessivas festas, feiras e festivais que permanentemente têm enchido a nossa Vila durante os últimos tempos.

É que, depois da tomada de posse para este novo mandato, o actual executivo municipal explica reiteradamente que não tem dinheiro para apoiar as principais instituições culturais do Concelho, para concluir obras estruturais das quais depende o futuro dos Cascalenses e nem sequer para garantir a condigna manutenção do seu património histórico que, com uma importância inaudita, e suficiente para reforçar a apetência turística da região enquanto destino de excepção nesta Europa em que vivemos, se vai esboroando e perdendo ao sabor da falta de vontade.

Veja-se o inqualificável estado de abandono em que se encontra a Villa Romana de Freiria. Atente-se ao desmazelo inadmissível em que se estão as Grutas pré-Históricas de Alapraia. Verifique-se a incúria que envolve a Estação Arqueológica dos Casais Velhos. Visite-se o amontoado de lixo que cobre a Villa Romana de Miroiços. Espreite-se o estacionamento em que se transformou a Villa Romana do Alto do Cidreira… ou as ruínas que se multiplicam no Monte Estoril ou na Parede…

Mas os palcos colocados junto à câmara todos continuam sempre em festa!

Dizem também os empresários da restauração de Cascais que as enchentes que a vila conhece nada trazem à economia do Concelho. E explicam que, com as muitas barracas que acompanham os eventos organizados pela edilidade, chegam sempre as barracas dos “comes-e-bebes” que se instalam nos pontos estratégicos e que fazem concorrência desleal a quem cá está e paga (bem pagas) as muitas licenças de utilização dos espaços.

Nada tendo contra as feiras e os arraiais que colocam Cascais em festa, acredito que tem de existir um equilíbrio entre o que se diz e o que se faz nesta nossa terra. Sob pena de a região (sobretudo depois de terem matado a marca centenária e pujante do 'Estoril' e de absurdamente tentarem a substituição pelo nome de Cascais) se transformar numa versão reles da Madeira, pondo em causa as muitas riquezas que Cascais ainda tem em troca da promoção política e pessoal de uns quantos. 

quinta-feira

Lisboa e o Tejo: Perspectivas de uma Intervenção Patrimonial



por João Aníbal Henriques

Aproveitando o ensejo da cerimónia de entrega das medalhas de mérito municipal, a Câmara Municipal de Lisboa inaugurou a renovada frente ribeirinha entre o Cais do Sodré e o Terreiro do Paço.

As obras, com orientação de um projecto assinado pelos arquitectos João Nunes e João Gomes da Silva, deram forma a um projecto ambicioso e de extraordinário alcance que muda de forma muito eficaz a relação sempre difícil de Lisboa com o Rio Tejo. Depois de concluído, o projecto recria uma zona de grande conforto urbano, suportado por uma linha de paisagem verdadeiramente extraordinária, que vem reforçar a face turística da cidade, recebendo desde logo largos milhares de turistas que ali sentem e percebem a excelência que configura este recanto único da capital.




Integrado no mesmo projecto, ficam também as obras de recuperação das Antigas Doca Seca e Doca da Caldeirinha que, retomando a sua ligação com o edifício do Arsenal, permitem perceber melhor como era a cidade durante o período áureo dos Descobrimentos Marítimos.

Por decisão da câmara procedeu-se também à  “semi-pedonalização” de todo o trajecto, com condicionantes acrescidas à circulação automóvel que, pecando pelo “semi”, deveria ter assumido de forma corajosa e definitiva o carácter exclusivo daquele espaço. Actualmente, e com imensas excepções para os veículos oficiais, que por ali circulam livremente condicionando o usufruto turístico a zona e comprometendo a qualidade cénica o espaço, a Ribeira das Naus está interdita ao trânsito automóvel durante o período das férias escolares e durante os fins-de-semana, sendo atravessado livremente nos restantes períodos.

Não se percebe (nem pode aceitar-se), aliás, que no próprio Terreiro do Paço – espaço de excepção e cara efectiva da Cidade de Lisboa – se mantenha um parque automóvel oficial que ali permanece estacionado! Havendo alternativas de estacionamento, motoristas que podem deixar as figuras importantes que por ali “trabalham”, porque motivo se compromete a face mas importante do turismo de Lisboa com uma fila de caros parados em frente ao Tejo?




Inexplicável é também, provavelmente por ter sido adiada para depois da inauguração, a inexistência de placas informativas ao longo do espaço que, explicando o que são as duas docas agora desenterradas e contextualizado a expressão de tempos antigos que mudaram a cidade e o Mundo, permitissem aos visitantes (Lisboetas e turistas) a compreensão efectiva da importância e o alcance da obra que ali foi concretizada. Actualmente, perguntando a quem passe uma explicação sobre o que estão a ver, os milhares de turistas que circulam pela Ribeira das Naus dificilmente encontram quem lhes explique o que estão a ver. E não é isso que queremos com o investimento brutal que ali foi feito!




Não ficando diminuída a importância desta obra e as consequências extraordinárias que tem no reforço da atractividade turística da capital, o certo é que parece ter havido pressa na pompa e no foguetório da inauguração.

E como o espectáculo já acabou, importa agora não perder tempo e tratar rapidamente de todos os pequenos pormenores que ficaram por fazer. Porque foram os Lisboetas – e os Portugueses em geral – quem pagou as obras em questão. 




Os Caminhos da Constituição




por João Aníbal Henriques

Com a aproximação das negociações que levarão à apresentação de mais um Orçamento de Estado, multiplicam-se já na comunicação social e nas redes sociais as notas sobre um eventual futuro chumbo às mesmas por parte do Tribunal Constitucional.

Como se não vivêssemos num estado de direito, no qual as instituições estatais têm como missão fazer cumprir os valores e as regras constantes na Lei, grassam os ditos irresponsáveis que sacodem as águas mornas de um Verão no qual a guerra eleitoral acontece surpreendente no maior partido da oposição, contaminando com os laivos assanhados dos que lideram essa batalha a percepção e a discussão em torno daquilo que verdadeiramente importa aos Portugueses.

Todos conhecemos bem as origens inglórias da constituição que temos. Todos sabemos bem quão anacrónica e descontextualizada ela se afigura perante os desafios que se levantam a Portugal. Mas, ao invés de assistirmos a um debate político em torno da adaptação da Constituição aos novos tempos em que vivemos, governo e oposição mergulham de forma desenfreada numa luta de guerrilha que tem somente como objectivo salvar a face dos partidos que lhes conferem poder, sem nenhum respeito, honestidade ou verdade perante as muitas necessidades que se vivem cá dentro.

E se é absurda a guerra intestina que acontece no PS numa altura como esta em que Portugal corre o risco de soçobrar definitivamente, mais absurda ainda é a falta de coragem do PSD e do CDS para fazerem a revisão constitucional que é tão premente.

Ao apresentar, ano após ano, propostas que reiteradamente chumbam nas suas bases constitucionais, só podemos concluir que das duas uma: ou o governo não conhece a Constituição que temos, e por isso persiste nesta senda anedótica de ir fuçando e tentando fazer aquilo que é necessário para retirar Portugal da crise em que vivemos; ou conhece e, persistindo no erro, teima hipocritamente fazer passar medidas que já sabe de antemão que serão chumbadas e que servem somente para encapotar o aumento da carga fiscal que, também ano após ano, vai impondo aos Portugueses…

Em qualquer dos casos, sabendo que é necessário rever a Constituição mas não o fazendo, PSD, PS e CDS estão hipocritamente a jogar o jogo do poder, compactuando nesta senda vergonhosa que condena Portugal a um fim inglório e que nenhum de nós alguma vez pensou ver.

Será que esperam que daqui a algum tempo, a dita revisão se faça à força, sem democracia, sem representatividade e contra a vontade dos Portugueses?...

Portugal Complexado e o Património Histórico de Nikolaiviertel em Berlim




por João Aníbal Henriques 

Portugal vive de olhos fechados para o que fazem os outros. Incapaz de olhar à volta e complexado com a sua pretensa posição periférica no seio de uma Europa que desde sempre procura caminhar em frente, o País produz redundâncias atrás de redundâncias, assentes num conjunto de académicos provincianos e sem capacidade para entender a vida e o mundo.

Este fenómeno, visível em áreas tão díspares quanto as da saúde ou da educação, atinge o seu auge na área da arquitectura e do património. 

Com quase 900 anos de História, Portugal possui uma riqueza inigualável que, mesmo com as destruições impostas pelas revoluções que foram oferecendo oportunidades de negócio às suas clientelas destruindo as maravilhas que Portugal possuía, continua a ser de tal forma impactante que não deixa indiferente quem nos visita.

Mas quando se trata de recuperar, reconstruir ou preservar, os nossos arquitectos, urbanistas e planeadores optam por aproveitar a oportunidade para deixar a sua marca, mesmo quando isso significa produzir intervenções que nada têm a ver com a nossa história, a nossa cultura ou mesmo com o espaço envolvente. Veja-se o que aconteceu com o Centro Cultural de Belém, com a Expo98, com a Praça do Saldanha ou com o antigo edifício do Hotel Estoril-Sol…

Em oposição, nos países mais desenvolvidos e economicamente mais florescentes, o que se passa é exactamente o contrário. Na Alemanha, quase completamente arrasada por duas guerras mundiais e pelo inquietante período de domínio soviético, a opção passa por reconstruir, de uma forma que os pseudo-eruditos Portugueses teimam em adjectivar de “pastiche”, os monumentos, as casas e as ruas, criando réplicas exactas do que existiu noutros tempos.




E, explicando que ao proceder dessa forma estão a contribuir em termos pedagógicos para recondicionar e reformatar a identidade dos alemães, reforçando o seu conhecimento e entendimento relativamente ao passado e ultrapassando complexos múltiplos que resultam dos muitos acidentes pelos quais passaram, os alemães recebem anualmente milhões de turistas que enchem as cidades, produzindo riqueza para hotéis, restaurantes, comércio e para o próprio estado…

Em Berlim, por exemplo, os ataques aliados de 1945 não deixaram pedra sobre pedra. Mas hoje, recebendo por ano milhões e milhões de visitantes estrangeiros, vai reforçando o seu potencial interesse através da reconstrução dos seus monumentos mais antigos. Veja-se o caso do quarteirão “medieval” de Nikolaiviertel… da catedral… da ilha dos museus… etc.





É bonito? Sem dúvida que sim. Tem interesse? Muito. Vale a pena visitar? O número de visitantes atesta isso mesmo. Aumentam a riqueza do País e da Cidade? Claro que sim. Reforçam a identidade e a cidadania? Certamente. 

Mas em Portugal, complexados com tudo e com uma história recente escabrosa, continuamos a assistir impavidamente à destruição do nosso património e das nossas memórias, em prol de uma pseudomodernidade provinciana e retrógrada imposta à força para reforçar a marca de visibilidade de uns quantos.

Pobre país este que tanto tem sofrido ao longo deste últimos 40 anos!